quarta-feira, 13 de abril de 2011

O APARTHEID SOCIAL NA CIDADE DE FLORIANÓPOLIS/SC

Por Jéferson Dantas[1]

A configuração espaço-temporal em Florianópolis é assimétrica do ponto de vista social e econômico, principalmente nas comunidades dos morros em sua área insular. Tais reordenações e contradições espaço-temporais sob a ótica da lógica do capital numa cidade como Florianópolis, apresentam efeitos sensíveis, corroborando para um apartheid social por vezes silencioso e invisível.

O ‘pacto urbano’ tem se perdido nos últimos anos em Florianópolis, já que, justamente, a desmobilização ou incapacidade de articulação das lideranças comunitárias, têm ocasionado um tipo de violência – por parte das políticas públicas – que ignora ‘o outro’, como se esse não fosse portador de discurso, apagando definitivamente o ‘litígio constitutivo da política’. Tal aposta no vazio político e o silenciamento das falas de dissenso são produtoras e reprodutoras da ‘violência legítima estatal’. Logo, a busca do consenso na ‘pólis’ se dá pelo apaziguamento do conflito e das tensões sociais, privatizando espaços públicos e tornando-os cada vez mais mercantilizáveis. Nesta direção, vão se cunhando todos os tipos de estereótipos possíveis em relação às comunidades dos morros e aos seus moradores, naquilo que a antropóloga Janice E. Perlman denominou de ‘etnocentrismo da classe média’.

De um modo geral, a classe média considera as favelas como um lugar de não civilizados, imundos e perigosos, repletos de desafortunados e ‘merecedores de piedade’. Além disso, a mentalidade burguesa ignora a cultura das comunidades dos morros, acusando-as de frívolas, devido aos gastos com o carnaval (desfiles, fantasias e carros alegóricos caros, perda de tempo com preparativos e ensaios). Tais ‘mitos da marginalidade’ vão se incorporando às políticas públicas adotadas e também aos veículos de comunicação em massa.

Além disso, a presença de policiais militares no maciço do Morro da Cruz tem apenas caráter repressivo e não educativo (como se defendia através das polícias comunitárias no primeiro mandato de Luiz Henrique da Silveira), através do Batalhão de Operações Especiais, da cavalaria e de outras unidades da polícia militar. O enfrentamento ao narcotráfico é fundamental, mas associada a outras políticas públicas ausentes em tais comunidades (água encanada, recolhimento do lixo, regularização fundiária, energia elétrica, escolarização de qualidade, etc.). Assim, a ‘guerra’ que consome a vida da juventude das comunidades dos morros do maciço numa faixa etária que vai dos 14 aos 22 anos não pode ser traduzida tão-somente pela associação ao narcotráfico, mas principalmente por uma política policialesca que enxerga os moradores dos morros como ‘classes perigosas’, onde as mesmas precisam ser combatidas não com políticas públicas, mas com repressão e extermínio. Tal espaço social, que apresenta pouca atratividade ao capital, recebe apenas reformas pontuais para não elevar o nível de insatisfação destas comunidades, afinal estes/as moradores/as também fornecem força de trabalho barata para a construção civil, para o comércio local e para o subemprego.

A maneira como vai se constituindo o estereótipo das comunidades do Maciço do Morro da Cruz, isto é, a ideia subjacente de que comunidades de morros, favelas ou bairros periféricos abrigam em seus espaços de convívio sujeitos violentos ou propensos à criminalidade, não possibilita compreender que a violência é um fenômeno histórico, portanto, influenciado por questões econômicas, sociais e decisões políticas ou governamentais. Para a antropóloga Alba Zaluar, as relações que envolvem os trabalhadores assalariados e os narcotraficantes são muitas vezes tênues e necessitam ser bem problematizadas, principalmente no que concerne à representação da categoria ‘trabalho’ por parte da juventude.

O conflito ‘trabalhador’ e ‘bandido’ parece estar alicerçado numa ‘ética do trabalho’, já que o/a trabalhador/a se vê superior aos narcotraficantes por conta de sua superioridade moral. Os jovens traficantes, principalmente, parecem não se identificar mais com tal ética; não possuem nenhuma ideologia, ignoram a escola e se preocupam tão-somente com um poder fugaz, bárbaro e narcísico. Por outro lado, a repressão policial promove a indistinção entre ‘trabalhadores’ e ‘traficantes’ quando fazem buscas nos morros, revistando de forma agressiva os/as moradores/as ou por serem pobres ou por serem negros/as. O policial treinado vigia, controla e reprime as classes definidas a priori como perigosas. Tais estereótipos reforçam o espelho negativo das comunidades empobrecidas dos morros em forma de mais violência, já que elas representam o inimigo que precisa ser combatido; nos morros não há pessoas, mas ‘indivíduos’, ‘elementos’ sem direitos civis.

Enfim, reconhecer a pluralidade das comunidades dos morros do maciço em todos os seus aspectos torna-se primordial para que compreendamos os seus modos de produção e reprodução da vida, evitando rótulos e estereótipos associados de forma reducionista à violência e à anomia. No conjunto das forças sociais em litígio, a anomia é utilizada como pretexto favorito pelos meios de comunicação de massa e por políticas públicas ineptas, que ao adaptarem seus discursos a um controle repressivo e excessivo dos ‘desvalidos’, exigem a responsabilização penal para a juventude delinquente. Ignorar, porém, mais de 35 mil seres humanos numa cidade que já sofre consequências alarmantes de mobilidade urbana, custo de vida elevado, escolaridade pública precária, despreparo policial e saúde ineficiente, não parece ser a melhor saída na conjugação de um ‘pacto civilizador’ atuante e propositivo.

PARA SABER MAIS:

DANTAS, Jéferson. Projeto histórico e construção curricular: a experiência social do Fórum do Maciço do Morro da Cruz. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 88, n. 218, p. 122-139, jan./abr. 2007.

DAVIS, Mike. Planeta favela. Traduzido por Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006.

PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. 3 ed. Tradução de Waldivia Marchiori Portinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985.




[1] Historiador e Doutorando em Educação (UFSC). Articulador pedagógico nas escolas associadas à comissão de educação do Fórum do Maciço do Morro da Cruz na cidade de Florianópolis/SC. E-mail: clioinsone@gmail.com.

O ABANDONO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA EM SANTA CATARINA

Por Jéferson Dantas[1]

Num período inferior a quatro anos, o estado de Santa Catarina foi responsável pelo fechamento de três escolas públicas que atendiam, principalmente, crianças e jovens das comunidades dos morros do maciço em Florianópolis. As escolas fechadas foram: Antonieta de Barros, Silveira de Souza e Celso Ramos. A escola Antonieta de Barros está sendo utilizada como anexo da Secretaria de Estado da Educação; a escola Silveira de Souza está sendo subutilizada pelo poder público municipal; e, por fim, a escola Celso Ramos se transformou em anexo da Assembleia Legislativa para abrigar novos gabinetes dos deputados estaduais e os seus assessores.

As comunidades do Mocotó, Prainha e Queimada, notadamente, foram ludibriadas pelo poder público, ao terem a confirmação de que a escola Celso Ramos se transformaria numa creche. Em relação a todos estes aspectos aventados, fica-nos a sensação nítida da desresponsabilização estatal em relação à educação pública, principalmente para aqueles e aquelas que mais necessitam de formação escolarizada. A população do Maciço do Morro da Cruz beira aos 35 mil habitantes, contingente que tende a se ampliar nos próximos anos. E, sem escolas próximas do entorno do maciço, para onde vão estas crianças e jovens?

A falácia de um poder público inepto e que apresenta sérios problemas de comunicação entre as suas secretarias e agências educacionais (Secretaria de Educação, Secretaria de Desenvolvimento Regional e Gerência Regional de Educação), revela ainda o indisfarçável preconceito de classe. Um dos motivos do fechamento da escola Celso Ramos, por exemplo, seria o ‘problema da violência escolar’, como se a mesma estivesse descolada da violência estrutural operada pelo modelo econômico vigente, o que implica adequada infraestrutura nas comunidades dos morros, oportunidades de trabalho e renda, saúde e, evidentemente, ótima escolarização. Via de regra, escolas que atendem comunidades periféricas recebem a pior estrutura educacional possível; os/as professores/as mais despreparados/as; e um modelo curricular completamente distante dos códigos culturais trazidos por estas crianças e jovens.

Situações como essas potencializam um maior número de analfabetos e analfabetos funcionais. Crianças e jovens sem escolarização estão mais vulneráveis aos riscos sociais, incluindo o narcotráfico. Em outras palavras, quais são as prioridades de Santa Catarina para este público escolar e para a educação pública de uma maneira geral? Esperar-se-á novas tragédias para que se tome alguma providência?



[1] Historiador e Doutorando em Educação (UFSC). Articulador pedagógico das escolas associadas à comissão de educação do Fórum do Maciço do Morro da Cruz (CE/FMMC). E-mail: clioinsone@gmail.com